Jean-François Véran e Frédéric Vandenberghe
A cena evoca logo um imaginário do tipo “Raízes do Brasil”. Na praça da igreja de Tabatinga (AM), uma centena de negros haitianos que acabaram de passar a fronteira com o Peru assistem apertados, uns contra os outros, a uma dança indígena realizada por um grupo oriundo da área vizinha de Umariaçú. A população local presente no evento parece absorta na contemplação dessas novas alteridades radicais, muito mais do que com a performance de seus vizinhos. É uma cena de primeiro contato, uma cena de fronteira.
Passando pela República Dominicana, Panamá, o Equador e o Peru, esses haitianos estão explorando uma nova rota de diáspora. As terras de migração tradicional – EUA, Canadá, Europa, Bahamas – estão hoje de fronteiras fechadas, ou fechando. Cerca de 30% dos migrantes que chegam a Tabatinga saem da República Dominicana, onde se queixam de discriminações múltiplas. No Equador só podem circular mediante a assinatura de um documento, tendo inclusive o direito ao casamento negado. Nesta geopolítica de barragens, em menos de um ano, mais de 3500 haitianos já passaram por Tabatinga. Um movimento repentino e maciço, sem precedente na história migratória recente da região Amazônica.
Foto: Jean-François Véran
Tabatinga: uma situação humanitária
O primeiro contato é áspero. Durante um período de dois a quatro meses, os migrantes devem aguardar em Tabatinga até serem recebidos pela Polícia Federal, para então seguir viagem até Manaus. Eles não estão preparados para tamanha espera. Roubados e abusados pelos “coiotes”, que os aguardam a cada etapa, chegam com escassos recursos. Uma viagem de US$ 1500 acaba custando em média US$ 3000. O dinheiro vem de vendas de terras e gado e, principalmente, de dívidas contraídas no Haiti, onde parte da família que ficou permanece como garantia. Em Tabatinga, os haitianos não conseguem trabalho devido a baixa oferta de emprego local, situação agravada pelo fato de terem entrado ilegalmente no Brasil.
Alguns poucos se encontram pelas ruas vendendo jornais, pintando uma fachada ou ajudando nos bares nos finais de semana. Os demais ficam sem recurso.
Desta realidade só podia resultar uma situação humanitária caótica. Na “casa dos haitianos”, um antigo motel, 150 haitianos organizam um “rodízio do sono”. Homens e mulheres vivem em uma concentração de uma pessoa por metro quadrado. Só há quatro colchões, cortados na espessura e que viram oito pedaços. Em Tabatinga, 78% dos Haitianos dormem no chão. A falta de sono afeta duramente o cotidiano. Frequentes brigas surgem por motivo de um colchão, ou de uma rede. 85% comem uma vez ao dia e, logicamente, 83% dizem passar fome. Na igreja do padre Gonçalo, única fonte de assistência, uma refeição é distribuída nos dias de semana. Nos finais de semana, como resumido por um jovem: “eu subo meu Calvário”. Na « Casa dos Haitianos », há apenas um banheiro para 150 pessoas. Nas demais casas, as condições sanitárias são normalmente melhores, mas, na falta de produtos básicos (sabonete, pasta de dente, etc.), a higiene acaba se tornando um problema cotidiano. Sem condições de tratar água numa cidade de água contaminada, ocorrem frequentes problemas de pele e de digestão.
O acesso à saúde é problemático para quem não fala português. Apesar de serem atendidos no Sistema Publico de Saúde, vale lembrar, está é uma região já castigada. Sem estatuto legal, entrar no hospital de guarnição militar, o único da região, parece altamente arriscado. Quando se olha para os mais vulneráveis entre os imigrantes, é fácil observar numerosas falhas de assistência e proteção. Uma criança de pais haitianos nasceu HIV positiva em Tabatinga. Os pais fugiram após conseguir a “adoção” da criança por uma família brasileira, que não sabia de seu status sorológico. Uma mulher de 40 anos sofreu um derrame e, após os primeiros socorros, foi trancada por semanas numa sala de banho sem assistência. Um homem de 20 anos morreu em consequência de uma hérnia, também resultado da falta de assistência médica.
A condição humanitária de Tabatinga ainda aumenta a vulnerabilidade dos migrantes, uma vez que a região é estratégica para o narcotráfico, onde não faltam oportunidades criminosas. Ao completar um ano de migração, nenhuma ocorrência tinha sido registrada. Contudo, não há dúvida de que a ocorrência de apenas um caso teria um impacto deletério sobre todos.
Invisibilidade a todos os níveis
O que configura tal situação é o fato de Tabatinga funcionar como um espaço de contenção. Ao cruzar a fronteira, ainda não é permitido circular no território brasileiro. Sem as condições de recurso requeridas, os haitianos não podem entrar com visto de turista. Da mesma forma, não podem se adequar a nenhuma das categorias de migrantes previstas pela legislação. Assim, a única opção legal que sobra é a entrada com o pedido de refugiado. Os haitianos entram, portanto, ilegalmente, e logo fazem tal pedido. A CONARE (Comissão Nacional de Refugiados) já estipulou que, a princípio, haitianos não seriam reconhecidos como refugiados. Tal orientação não anula o direito individual de formular o pedido, o que os haitianos continuam tentando. Com isto, abre-se uma vasta ficção, onde os haitianos são juridicamente tratados como solicitantes de refúgio sabendo que serão in fine indeferidos. E é desta ficção que decorre a situação bem real de Tabatinga.
O tempo de espera é resultado da obrigação de realização de uma entrevista individual (sobre os motivos do pedido) junto a Polícia Federal (Lei de 1997). A PF de Tabatinga tem estrutura para receber os poucos pedidos que ainda vêm da Colômbia, mas não para tratar centenas de entradas repentinas. Com a capacidade de realizar 24 entrevistas por semana, uma lista de espera de 500 pessoas e um fluxo semanal de 70 novas chegadas, a crise é aritmética. Afinal, Tabatinga é uma vasta sala de espera. Alguns funcionários a mais bastariam para por fim à situação humanitária local.
A assistência local, por sua vez, é impedida em primeiro lugar pela ilegalidade formal dos migrantes no momento de sua chegada. Como argumenta a Secretaria Administrativa da Prefeitura de Tabatinga, “não existe linha orçamentária para uma população invisível”. A população, por sua vez, é pouco mobilizada por efeito de saturação, por medo das consequências econômicas e sanitárias (cólera e HIV-Aids) e, por não perceber os haitianos como necessitando de ajuda: “não pagaram US$ 3000 de passagem? Não andam pelas ruas de roupas boas?”.
Em Manaus, já chegaram mais de 2000 haitianos. O “visual” da cidade está transformado, já que em cada esquina encontra-se um haitiano. Mas, ainda assim, a invisibilidade continua. Apenas um deputado estadual, José Ricardo (PT), chamou a atenção sobre Tabatinga, o que não causou qualquer resultado. O movimento negro local argumenta que “já não consegue cuidar dos seus (negros)”.
Em termos de competência, fato é que assuntos migratórios são de responsabilidade da União. Nesse sentido, é em Brasília que se decide o futuro dos solicitantes de refúgio haitianos.
Diante da impossibilidade dos haitianos serem contemplados dentro da lei de refúgio, a CONARE funciona como uma câmara de registro dos pedidos escaneados e mandados desde Tabatinga, mas sem tomar as medidas de assistência e proteção das quais os solicitantes de refúgio teriam direito por lei. Mas a comissão está numa situação de alto risco político: múltiplos projetos estão em tramitação no Congresso para modificar ou suprimir a lei de refugiados. Os parlamentares ficaram muito insatisfeitos pela resposta da CONARE ao “caso Cesare Batisti”… Nestas circunstâncias, manter a invisibilidade sobre os haitianos é uma forma de conter um novo escândalo em potencial.
A CONARE transmite então os pedidos para a CNIG (Comissão Nacional de Imigração) que, dentro da cláusula relativa às “condições especiais”, tem a possibilidade de garantir a permanência por motivos humanitários. A CNIG atribuiu em poucos meses 618 vistos aos haitianos. Suas últimas deliberações deixam claro que somente os haitianos diretamente afetados pelo terremoto poderiam ser contemplados, e que a CNIG não tem a atribuição de substituir pelo expediente das “condições especiais” uma verdadeira política migratória.
O ACNUR (Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados), que supervisiona e coordena a ação internacional em favor da proteção dos refugiados no mundo, e membro consultivo da CONARE, reforça a recomendação da ONU de não deportar haitianos. O órgão é ciente de que alguma ação urgente deveria ser tomada para aliviar Tabatinga, mas argumenta que dentro da geopolítica global tumultuosa, o Brasil aparece como um asilo de paz e sucesso. Por este motivo, o ACNUR no Brasil não tem visibilidade e orçamento adequado.
A presidência da República lembrou, em novembro de 2011, da relação especial que o Brasil desenvolveu com o Haiti, notavelmente durante sua atuação na MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti). A presidente Dilma Roussef garantiu que, com a retirada gradativa das forças armadas brasileiras do país, a cooperação brasileira continuará na forma de ajuda para a reconstrução do país.
Com o argumento do seu novo peso na diplomacia mundial, o Brasil está solicitando hoje uma vaga no Conselho Permanente de Segurança das Nações Unidas. Uma fonte essencial de sua legitimidade é justamente a atuação reconhecida no Haiti. Porém, na ausência de um acordo sub-continental sobre as migrações haitianas, o Brasil não quer correr o risco de ser o único país praticando algum nível de abertura. Tabatinga aparece neste cenário como uma diplomacia discreta de (tentativa de) contenção.
Enquanto isso, Tabatinga apresenta uma situação humanitária preocupante. Na hora de sua entrada nas novas rotas da migração globalizada, o Brasil corre o risco desnecessário e inoportuno de um escândalo internacional.