Antonio Engelke
Que ninguém me entenda mal: as UPPs são parte de uma política de segurança pública bem-vinda, e seu mais recente desdobramento, a operação da Rocinha, um sucesso. Mas é aí que reside o problema – a sensação de que, com Nem atrás das grades e a comunidade ocupada pela polícia, o trabalho está feito. O próprio Beltrame alertou: a conquista do território é apenas o primeiro passo, o verdadeiro trabalho ainda está por vir. Não lhe deram ouvidos. Nas reportagens da TV, nas redes sociais, o ôba-ôba triunfalista impera. Vencemos. As forças do Bem derrotaram o Mal.
Nada mais distante da realidade. Todos sabem que a PM carioca não é apenas sócia do tráfico, mas sua sucessora natural, na forma das milícias. Mas o que a opinião pública parece ignorar é a amplitude e o significado deste fato. Se uma pessoa é extorquida ou violentada por um traficante, tem a quem recorrer; a resposta do poder público é falha, mas existe. Se sofre os mesmos abusos nas mãos de um miliciano, a resposta provavelmente nunca virá. Agora imagine a situação que está se desenhando nas favelas cariocas – comunidades inteiras, centenas de milhares de pessoas, passando da noite para o dia a viver sob o controle de homens treinados para a guerra, não para o policiamento comunitário. Imagine também as tentações a que estes homens despreparados estarão expostos. Se você não consegue visualizar como esta história pode acabar, permita-me compartilhar uma experiência pessoal.
Incentivado por um amigo jornalista, decidi subir a comunidade do Dona Marta, Zona Sul do Rio, após a expulsão do tráfico. Andei pelas ruas sem ser incomodado. Lanchei na birosca no alto do morro. Puxei assunto com moradores; temerosos de que os bandidos pudessem voltar (“já vimos isso acontecer”), evitavam opiniões. Mas consegui assunto o bastante para ser avisado de que, dali a uma semana, haveria a primeira reunião entre o comando do batalhão e a comunidade. As faíscas entre a polícia e os moradores se avolumavam, e a conversa era necessária.
A reunião aconteceu no alto do morro, numa noite abafada; se eu suava além da conta, era por medo de ter o pequeno gravador de voz descoberto. Escoltada por cerca de dez homens armados com fuzis, a comandante Priscila abriu os trabalhos anunciando que, em função de um treinamento no exterior, seria temporariamente substituída pelo Tenente Andrada. Primeiro espanto: durante todo o encontro, o Tenente não dirigiu uma única palavra àquelas pessoas, isto é, sequer as reconheceu como interlocutores. Só não entrou mudo e saiu calado porque atendeu três vezes o celular. Engana-se quem pensa que os moradores não o notaram. A indiferença é sempre agressiva demais para passar desapercebida.
Mas a comandante Priscila falou, e bastante. Ouviu também. As queixas não tardaram: policiais furando a fila do bondinho que leva ao alto do morro, humilhando moradores durante revistas. A questão que ocupou a maior parte da reunião, contudo, foi a proibição de festas. Baile funk, pagode na laje varando a madrugada, nada disso era mais permitido. Ou melhor, o pagode até estava liberado, mas só até certo horário. Há aí duas tristes ironias. Primeira: se tal proibição era a principal pauta do debate, foi somente porque a brutalidade da PM não era novidade. Segunda: justamente no momento em que celebravam a vida livre do tráfico, estavam impedidos de festejar. A Comandante procurou resistir, argumentando que a comunidade viveria agora de acordo com a lei, a mesma no asfalto e no morro. (Falso: em Botafogo, o policial bate à porta pedindo para abaixar o volume; no Dona Marta, invade a festa e, se o som não for logo desligado, confisca o equipamento.) Acabou cedendo frente aos protestos, apenas para encarnar o personalismo que é afinal uma das razões do descrédito das leis no Brasil. Se os moradores “se comportassem”, ela Priscila reavaliaria o horário de término das festas, e talvez o estendesse um pouco mais.
Repare: indiferença, maus tratos, restrição de liberdade, submissão aos desmandos do chefe. As diferenças entre a vida em comunidades dominadas pelo tráfico e aquelas que receberam UPPs são muitas, é claro. Mas são as semelhanças que merecem atenção. Expulsar traficante é fácil. Difícil é evitar as tentações daqueles que, sem a “mesada” recebida de seus antigos e prósperos sócios, passarão a ocupar territórios carentes e por isso mesmo vulneráveis. Difícil é levar os moradores da Rocinha a experimentarem, na prática, a realidade da cidadania, de modo que a sociedade inteira passe a tratá-los como aquilo que eles são: pessoas iguais a quaisquer um de nós, habitantes do asfalto. Aí o desafio – e se a opinião pública não o percebe, é sobretudo em função deste espetáculo triunfalista da mídia, que transforma uma realidade complexa em uma tosca narrativa maniqueísta que serve apenas a interesses eleitoreiros.
Sem um amplo plano de reestruturação da polícia, as UPPs poderão transformar-se em mais um capítulo, talvez o definitivo, desta associação entre a polícia carioca e o crime organizado. No domingo em que a Rocinha foi invadida, Beltrame declarou: “Libertamos as pessoas do jugo do fuzil”. O risco agora é o jugo do coturno.
Parabéns, Antonio!
Excelente matéria!
abs
Solange B.
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Nossa,fiquei de boca aberta com tudo isso.
Finalmente alguém capaz de mostrar a realidade das Upp’s nas Favelas.
Não discordo de nada..
Esta de parabéns!
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Ótimo artigo Antônio!
Acho que devemos pensar também os dias que antecedem a implantação das UPPs. A mídia só mostra a ocupação “sem tiros”, mas não o que ocorreu antes disso.
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