Memórias de um Professor de Filosofia: a Grande Aluna

Prof. Archibald Lawrence

[NE: O professor Archibald Lawrence lecionou na Universidade de Salisbury, na Nova Scotia, Ca., Já próximo da aposentadoria, em 1963, mudou-se para Nova York e tornou-se Professor Visitante de Filosofia na Bronx Community College. Alguns de seus textos, depoimentos sobre alunos e alunas, foram encontrados no Mina Rees Library e doados a Revista Pittacos para divulgação. Este é um deles.]

 Do semestre restavam apenas algumas semanas. Eu já havia irritado aquela matilha de estudantes nova-iorquinos com minha ignorância platônica e meus trejeitos aristotélicos. Líamos Maquiavel e nem culpa sentíamos.

Bravejamos contra Sir Thomas Hobbes numa guerra de iletrados contra sua matemática filosofia. Rousseau nos esperava, algumas aulas à frente, mas a expectativa de sua solidão não nos atormentava. Nos divertíamos, ao que tudo parece. Ao menos quatro de nós. Dos outros pouco sabia e pouco procurei saber. Era a grande maioria que silenciava, isto quando não murmurava num zunido coletivo que tornava nossos diálogos monologicamente ininteligíveis uns aos outros. Éramos quatro formigas em uma colméia.

 Maureen sentava sempre à minha direita. Caminhando de um lado para o outro da sala de aula, tentando em vão manter pelo menos alguns abelhudos de olhos abertos, acabava sempre por desaperceber que eu passava a maior parte da aula em um único canto da sala. Daquele lado, como num púlpito, de dedo em riste pregando para três enquanto os outros, apesar do esforço dramatúrgico da minha voz, adormeciam. Os três permaneciam imóveis, olhos fixados no meu confuso gesticular, em que cada membro do corpo parecia querer tomar uma direção diferente; olhos como que hipnotizados por um cântico filosófico, que pela indiferença dos demais, não tinham sedução alguma. Algo os atraía àquele solilóquio e os congelava em seus assentos.

 A única coisa que desviava periodicamente a nossa atenção eram os movimentos bruscos de Maureen por causa do desconforto intermitente que seu largo corpo lhe causava na estreita cadeira, que parecia feita pra incomodar. Maureen se erguia pouco singela e remexia as cadeiras até tudo reassentar. Em sequência, me olhava com cara de apologia e pedia desculpas aos dois colegas com quem compartilhava aquele ritual de sedução verbal. Eu fazia que nem via, com medo do constrangimento que poderia causar. Ora desviava os olhos para a multidão e seus falastrões, ora virava de costas e anotava qualquer coisa no quadro branco. Copiada em um caderno, daria a eles sensação de participação. A mim, bastava para desviar meus olhos constrangidos por Maureen.

 Só Maureen parecia ter lido o que era pra ler que ninguém lia, nem mesmo eu. Os outros três faziam que liam e sabiam falar como quem lia. Mas não liam. O resto que nunca lia, ria, sem medo de causar constrangimento. Maureen gostava de falar. Ela erguia a mão reticente, nunca a deixando chegar acima da cabeça. Quando seu dedo erguido chegava na altura do queixo, eu já sabia o que ela queria. Queria falar, e falava. Eu falava de volta, porque de falar nunca fico constrangido. E falamos tantas vezes que esquecemos de contar. Maureen é boa com números.

 Mandei Maureen falar comigo depois da aula, como quem avisa do castigo. Tentei consertar mas não deu. Ela veio. Antes tive que falar com um dos que dormem. Eles acham que eu fico feliz de falar com eles; eles acham que sou carente. Eu falo. Depois Maureen entrou. Reclinei minha cadeira de docente, dei aquela giradinha que conota autoridade e perguntei as perguntas que professor pergunta. Ela respondeu resposta que aluno responde. Eu retruquei como é devido retrucar, e ela respondeu que ia me contar. Como quem desnuda um segredo mantido nas cavidades que seu largo corpo produz ao se redobrar, Maureen falou, e falando me deixou encabulado. Maureen, uma dos quatro, a do canto direito de corpo largo, lendo e falando, era também a quarenta e dois, presidiária, liberdade condicional, condenada por fraude bancária, fraude telefônica, e um monte de fraude fraudulenta que não sei porque é fraude, já que todo mundo faz. Mas nem todo mundo acaba em cana. Maureen acabou e agora ela é quem  fala da direita. Maureen passou dois anos com Amy Fisher e dali saiu. Dali tomou porre todos os dias até ficar com preguiça de ir pra casa. Maureen morou na rua e tinha trezentos e oitenta libras então. A menina, a quarenta e dois, a da direita, já foi mais larga ainda. Não devia nem caber na cadeira então. Maureen procurou ajuda, ajuda encontrou – isto é América, do Norte, é claro. Agora Maureen virou “gringa”. Faz parte do esquadrão americano dos que estão se recuperando. Todos se recuperando de dez anos de ator de televisão brincando de presidente. Maureen também quis brincar e brincou. Ator de televisão vira herói, Maureen vai em cana.

 Quando Maureen me contou que gostava de tomar porre todo dia, disse-lhe que eu era viciado em drogas. Tentei ficar igual. Fiquei constrangido. Prometi a Maureen que faria aquilo que professor faz. Agora, Maureen deve estar tomando um porre e eu fazendo aquilo que professor faz. Professor entende, professor compreende, professor solidariza. Aí professor chega em casa, fica constrangido e escreve. Assim acha que está desculpado. Desculpado por fazer o que professor faz. O que professor não faz.

(tradução de José Eisenberg)

Um comentário sobre “Memórias de um Professor de Filosofia: a Grande Aluna

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s