Melancholia

Um Mundo Consumido

Ohne Titel

Antes do surgimento do que conhecemos por psicanálise, Melancolia era um termo usado por médicos para diagnosticar o que hoje entende-se como depressão. “Sujeito está sofrendo de melancolia”, seria o símile correto para esse estado de doença psíquica, que segundo uma linha enorme de médicos e psicanalistas, tem origem a partir de um sistema de defesa do próprio organismo que, em loop, se aprisiona nele mesmo. Mas defesa de que? De ameaças. Que ameaças? De um mundo inteiro delas,  aliás, de mundos externos e internos, que causam uma fadiga conhecida por stress, que gera, entre outros sintomas, o isolamento.

Em seu trabalho anterior, “Anticristo”, o primeiro filme da “trilogia da depressão”, Lars Von Trier trabalha com o tema da culpabilidade levado a um patamar histérico e doloroso a partir do trauma da perda. A essa histeria pode-se ver a transferência dessa dor de forma hedionda, onde a carne deveria ser vingada pela carne. E fraturas a parte, é um filme que traz o espírito à tona na tela, não em estado livre, mas dentro de uma lógica perversa, barroca, de purificação e redenção, carregando em si a difícil conclusão: o mal somos nós mesmos.

Curioso pensar nisso quando a ideia de perversidade a princípio não tem relevância alguma em seu segundo filme, “Melancolia”, quando se vê o mundo condenado, fadado ao fim por um planeta gigante, azul, que se chocará com a Terra e a pulverizará em pouco tempo. Afinal, o que há de se relativizar, julgar ou analisar em qualquer ato, quando não haverá mais quem o faça? O que haverá de se presenciar é o fim da memória, de toda memória. E tem-se talvez a ideia de morte mais potente já transferida para a grande tela, porque sua poesia não se encontra no ato, mas antes do ato. O ato em si é o nada. É morte imediata, sem depois. É apenas fim.

 E é nesse valor do nada que se extrairá o valor da existência, da sensação, do sentimento, da bondade, da maldade, da perversidade, da materialidade, da metafísica e de tudo que nos rodeia desde a descoberta do primeiro instrumento ancestral, manipulado por nós, hominídeos, ainda com quatro dedos. E são esses valores que permeiam a personagem principal, Justine, vivida por Kirsten Dunst – que em vida real vinha de uma depressão, assim como o próprio Trier. É dentro desses valores que percebe-se a figura de uma menina fragilizada e confusa por sua evidente doença, encontrando no ideal romântico (noiva, recém-casada) respostas tão vazias enquanto ideia de fuga da família disfuncional, cujo pai é ausente e a mãe – dominadora e ressentida – mantém seus controles para além de seus domínios culturais. Mãe essa vivida magnificamente por Charlotte Rampling, que em poucos minutos desestrutura todo o castelo de cartas que as duas irmãs tentam construir. Em suma, a personagem de Justine possuía vetores suficientes para se sentir constantemente ameaçada e consequentemente estressada, e por fim deprimida.

A primeira parte do filme gira em torno da festa de casamento de Justine, na mansão de seu cunhado, um milionário vivido por Kiefer Sutherland (canastrão), que não transmite decentemente o quanto cobra caro por prover aquele luxo a seus familiares. Mas o que lhe falta à interpretação, não lhe falta ao texto de suas falas, repletas de uma perversidade sutil, mascarada pela figura educada, benevolente e principalmente, superior, que tenta transmitir. E para entender Claire, irmã de Justine, e outro ponto dessa aresta afiada, é preciso entender seu marido, John, que funciona ao mesmo tempo como um porto seguro de prestígio e pujança, e mantém sua insegurança controlada pela fragilidade atroz de sua esposa, interpretada magistralmente por Charlotte Gainsbourg. Claire é casada com a riqueza e todo o ideal de controle que o prestígio pode causar. Possui todos os cacoetes de alguém que paga caro para viver com seu marido e o prestígio que ele carrega. Não que não goste dele, mas tornou-se a figura perfeita para mostrar utilidade ao seu dinheiro. É ela, quem, aliás, organiza a festa de casamento de sua irmã, com todo cerimonialismo tradicional irrelevante. É dramático, por exemplo, sua aflição com o atraso de sua irmã para a cerimônia de recepção e seu sentimento de culpa com o cerimonialista. Mas chega a ser patética a escolha delicada dos chocolates que vai colocar em cima do travesseiro de seu filho todas as noites. Em alguns casos, os vetores contrários podem levar não a depressão, mas ao comportamento  compulsivo da organização.

A festa de casamento, por sua vez, é um réquiem para o desastre interior de Justine, que eclode a partir da faísca acesa por seu pai e queimada friamente por sua mãe. Em seu ventre, por dentro do vestido, afirma a irmã preocupada com seu comportamento, um pedaço de lã por entre suas pernas atrapalha seus movimentos. Durante a cena inicial do filme – um sonho – Justine se vê vestida de noiva, presa por um bolor de lã que sai da terra como raízes ou cipós, impedindo que ela ande. O simbolismo dos vetores contrários que a seguram chega a ser tão claro que é possível nem encarar como figura de linguagem. A esse sonho inicial, hostil, sombrio e recheado de impotência, se percebe que a inútil ideia de salvação só resta às figuras a quem deseja abraçar: a si própria, como a noiva imaculada, a sua irmã e seu filho e a seu cavalo. O tempo, representado pelo relógio de sol gigantesco na grama do campo de golfe de outrora, é difuso pois há dois sóis: o que ilumina e o que escurecerá tudo que se entende por vida.

A vida, aliás, se vê com extrema potência também pela natureza, que se rebela confusa diante das alterações causadas pela passagem de Melancolia: pássaros cantam na madrugada iluminada, a neve cai em pleno verão, cavalos se inquietam, os insetos saem da terra, como se todos de alguma forma carregassem a legitimidade enquanto “voz” do planeta, que os seres humanos provavelmente perderam quando encontraram na ciência a resposta para todas as suas perguntas. Contraditoriamente, a ciência se valida a partir da supressão das verdades invalidadas por uma nova verdade a ser seguida. E é nesse “erro” existencial que se vê que o que era certo (os cálculos da trajetória do planeta, por exemplo) estava totalmente errado e que a única certeza que há de se ter é que o fim está próximo.

Justine parece ter previsto o fim em seu sonho inicial. Mostra ter um poder mediúnico sobre a natureza das coisas. Parece ser a única a saber dialogar com a pergunta que serve tanto a metafísica ou a ciência: há vida além? Sua resposta chega a ser assustadoramente crua: não há em todo universo vida alguma, a vida é uma anomalia. Justine, portanto, se desnuda para a única verdade possível: a morte. Debutante a esse novo mundo, se desnuda ao último luar de Melancolia e se toca, na margem do rio, como se sentisse no planeta a carne de uma relação íntima, verdadeira e inevitável. Esse acasalamento da esterilidade a acalma como o prazer do calmante que a sociedade demandou à ciência para que nossos mundos internos (no fundo irrelevantes) pudessem conviver com a natureza tirânica das coisas. Curiosamente, é esse calmante que faz de John, um entusiasta da materialidade científica, se matasse a fim de ter uma morte mais digna, à altura de sua condição social superior.

É interessante observar que esse sentimento de John ainda transborda em Claire que, em seu último desejo, pede para morrer ao lado da irmã tomando um bom vinho. Justine a rechaça, como se dissesse que morrer é um estado inevitavelmente frio e solitário e que a morte não conhece a ideia de dignidade – uma invenção humana que sempre nos regeu como crença. Justine iria morrer como tivesse que morrer, mas que morreria livre, assim como seu cavalo, que simbolicamente não passava pela ponte (como Justine se viu em certo ponto da sua vida) e pastava na relva, mastigando seus últimos momentos de grama verde.

Lars Von Trier, explorando a finitude completa da existência, apresenta a morte de forma sincera e assustadora. Mas seus acertos não se resumem a temática do fim, mas a questões muito pertinentes à forma, com a genialidade de quem sabe mexer e controlar as sensações de seu público como poucos. Primeiro, pela grandiosidade com que trata o planeta Melancolia: silencioso, azul, imponente, poético, predador, e munido de uma calma determinação que falta a muitos de nós, humanos. Em segundo lugar, a síntese quase teatral de um cenário que beira o inatingível a nós, seres reais, mas que eleva os personagens e as tensões dos personagens a mais pura compreensão épica para o desenrolar de uma grande tragédia humana. Por último, a música atenuante e assustadora nos momentos certos, sem deixar escorrer a sensação de apelação no transcorrer da história.

Por fim, fica uma das mais interessantes mensagens, que só os enfant terribles do cinema poderiam passar com tamanha precisão simbólica: a de que nosso mundo (nosso, dos homens) está doente, que a depressão generalizada é questão de tempo e sua consequência é que ela continue engolindo o planeta tanto quanto nos engoliu – e quando isso acontecer, podemos ter certeza de que acabaremos com tudo a nossa volta.

3 comentários sobre “Melancholia

  1. .Li várias resenhas sobre esse filme que muito me intrigou e me deixou desconfortável. Confesso que essa versão da Pittacus me pareceu sombria, a da depressão inescapável, mas ao mesmo tempo me fez sentir como Justine: resignadamente aguardando o planeta azul

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