A Chuva de Sapos

Mannuella Luz Oliveira Valinhas

“Naõ he porém facil de perceber, nem de explicar o modo sabido, e certo, porque em muitas regioens succede em alguns tempos, choverem sapos.” A transcrição a seguir é um excerto do “Problema da Arquitetura Civil Demonstrada”, escrito por Matias Aires Ramos da Silva de Eça para explicar cientificamente os motivos do tamanho da destruição causada pelo terremoto de Lisboa de 1755. Como a grande maioria da intelligentsia do seu tempo, Matias Aires transitava por campos de conhecimentos diversos e bem distintos, sobretudo segundo nossa concepção de áreas de atuação intelectual. De modo que ele conseguia se interessar tanto pelos assuntos ligados à literatura moral, tradução e direito, quanto pela químico-física e história natural. Nessa obra, toda a argumentação é ligada à ciência empírica, e o debate que apóia a discussão é a querela entre os antigos e os modernos. Apesar de se mostrar um defensor enfático da empiria e das ciências modernas, Matias Aires se coloca ao lado dos antigos. Isso porque empiricamente percebe que os prédios antigos são mais resistentes, e o são não devido aos materiais ou composição química utilizados nas construções modernas, mas pelo modo como os homens modernos se apropriam das técnicas antigas sem respeitar seus valores. A corrupção do homem moderno leva à construção de um mundo frágil – tanto no sentido físico quanto no sentido moral.

Para que seu texto tenha embasamento científico, Matias Aires descreve e define cada elemento que forma a matéria em particular e a natureza das matérias que são formadas pela mistura dos elementos. No extrato escolhido ele se debruça sobre um fenômeno interessante, muito debatido e relativamente comum: a geração espontânea – nesse caso, a geração espontânea e instantânea de sapos em situações específicas, conhecida como chuva de sapos.

O argumento passa, inicialmente, pela afirmação de que ocorrem fenômenos verificáveis, mas cuja explicação e entendimento são difíceis e quiçá impossíveis. A experienciação (tentativa de observar e controlar o evento em laboratório ou pela observação empírica e sistemática de sua ocorrência na natureza) faz com que os eventos possam tornar-se não só “explicáveis mas prováveis”. Assim ele explica a chuva de coisas inanimadas, como azougue (mercúrio), por exemplo. Entretanto, isso é bem diferente do fenômeno da chuva de sapos. A discussão sobre a chuva de sapos tem lugar porque é empiricamente observável, mesmo sendo difícil de explicar de maneira racional. O mais impressionante, para Matias Aires, é que não se trata da elevação de animais prontos do chão e sua posterior queda, mas da criação instantânea desses seres na atmosfera a partir do contato de elementos específicos numa situação também específica. A geração espontânea e, no caso, instantânea – visto que os animais já surgem em sua perfeita forma de sapo, não atravessando os estágios naturais do amadurecimento – não pode ser explicada pelas noções de geração aristotélica, dado que o surgimento se dá sem principio seminal; e nem tampouco pode ser compreendido pela via da corrupção, uma vez que seu surgimento já é a irrupção desses seres perfeitamente formados, sem a intervenção temporal necessária para que haja a corrupção propriamente dita.

Assinalando a ocorrência empírica de um fenômeno que não consegue ser descrito satisfatoriamente pela linguagem físico-matemática, Matias Aires aceita a incapacidade da linguagem da ciência conseguir explicar algo que faz parte da natureza. Ele opta por mostrar essa incapacidade sem negar o fenômeno, e sem, ainda, colocar em questão o valor da cientificidade e da empiria para a compreensão do mundo natural.

O trecho de Matias Aires trouxe à lembrança as críticas do homem do subsolo de Dostoievski, que não permite que os limites da ciência sejam os limites do Homem e do Mundo. Selecionamos uma passagem das Memórias do Subsolo, que nos parece emblemática dessa aversão à tentativa de encaixe de tudo o que existe – inclusive o pensamento e os desejos humanos – aos padrões da linguagem da racionalidade e da cientificidade modernas:

“O impossível quer dizer um muro de pedra? Mas que muro de pedra? Bem, naturalmente, as leis da natureza, as conclusões da ciências naturais, a matemática. Quando vos demonstram, por exemplo, que descendeis do macaco, não adianta fazer careta, tendes que aceitar a coisa como ela é. Se vos demonstram que, em essência, uma gotícula de vossa própria gordura vos deve ser mais cara que cem mil dos vossos semelhantes, e que neste resultado ficarão abrangidos, por fim, todos os chamados deveres, virtudes e demais tolices e preconceitos, deveis aceitá-lo assim mesmo, nada há a fazer, porque dois e dois são quatro, é matemática. E experimentai retrucar. (…) Meu Deus, que tenho eu com as leis da natureza e com a aritmética, se, por algum motivo não me agradam essas leis e o dois e dois são quatro? Está claro que não romperei o muro com a testa, se não tiver forças para fazê-lo, mas não me conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um muro de pedra e de terem sido insuficientes minhas forças”

Para além da crítica ao racionalismo que aprisiona, há ainda o entendimento de que, se há muita dificuldade (ou mesmo impossibilidade humana) em ultrapassar os limites da racionalidade ou do pensamento orientado pela linguagem científica, não é simplesmente pelo reconhecimento de tal dificuldade que devemos entender que tal modelo é o único possível e que todas as coisas são passíveis de serem apreendidas por suas categorias.

Nota biográfica
Matias Aires nasce em São Paulo em 1705. Seu pai faz fortuna na América Portuguesa, e, quando chega a altura de os filhos entrarem na escola, a família retorna ao Reino, onde consegue fazer parte dos círculos da nobreza. Matias Aires estuda em Coimbra e na França, faz parte das Academias. Em 1752, são publicadas as “Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens”, única obra publicada em vida do autor, que também escreveu um elogio às façanhas do pai, tratados em francês e latim (esses últimos perdidos) e a obra de onde retiramos o trecho abaixo – “Problemas da Arquitetura Civil Demonstrado” – que só foi publicado postumamente (1777). Com a saúde do pai debilitada, assume o cargo de Provedor da Casa da Moeda, onde permanece até que motivos obscuros fazem com que perca o cargo. Retira-se, então, do convívio social: vai viver no campo sem amigos e sem família. Matias Aires teve dois filhos bastardos e nunca chegou a se casar. Faleceu em 1770.

Explicação para o Fenômeno da Chuva de Sapos – por Matias Aires Ramos da Silva de Eça.

IN: Problemas da Arquitetura Civil Demonstrada. Lisboa, 1777. Paginas 54 a 62. Grafia original.

Daqui póde inferir-se, e tirar-se a explicação de alguns phenómenos históricos, quando se conta que nesta regiáõ chovera ferro, naquella cobre, em outra pedras, &c. Fides sit penes auctorem; porém, a possibilidade se fatos semelhantes, póde deduzir-se facilmente pela certeza que há de outros phenómenos, ou naturalidades, que sendo verdadeiros, ainda são mais diffíceis de explicar. E com effeito, póde talvez chover azougue, quando se evapóra este metal ao fogo, ou quando os calores subterraneos o evaporam nas minas proprias, em que aquelle metal se cria; entaõ subindo os vapores mercuriaes, e achando em certa altura humidade sufficiente que os ajunte, e condense, a chuva há de arrastar precisamente, e trazer comsigo o azougue já unido com algumas das suas partes, e tendo já pezo maior, e mais proporcionado para naõ poder subsistir no ar. Este azougue porém naõ he produçaõ do ar, nem propriamente chuva de azougue (como se diz) mas é o mesmo que exhalando-se da terra, ou já por calor artificial, ou por fogo subterraneo, adquirindo, pela conjuncção de suas partes divididas, o maior volume, e por consequencia maior pezo, cahe como precipitado sobre a terra, de donde se havia exhalado antes. Isto é possível que succeda a outros corpos differentes; e deve succeder assim naquellas mesmas, e suppostas circunstancias; e ficando por este modo muito mais facil de explicar aquelles taes phenómenos, de que a Historia faz mençaõ; ficando com effeito naõ só explicaveis, mas provaveis.

Sempre he certo, que todos os corpos, que admittem hum certo grau de divisaõ, e de atenuaçaõ, e que além disto podem ser impellidos por algum meio a elevar-se, ou subir ao ar, ficando nelle suspendidos, e em contínua agitaçaõ; por outras causas, e por outros movimentos tornaõ a entrar, e a buscar a superficie do globo terraqueo, de onde sahiraõ; e succedendo assim em muitos, e diversos corpos, huma perpétua circulaçaõ ou circumvoluçaõ de hum elemento para outro.

Naõ he porém facil de perceber, nem de explicar o modo sabido, e certo, porque em muitas regiões succede em alguns tempos, choverem sapos. Desta naturalidade ninguem duvída, ao menos aquelles que tiveraõ occasiaõ de ver, e viraõ com effeito muitas vezes aquella repentina producção e nascimento: contudo o caso naõ he menos verdadeiro, e succede regularmente assim.

Em estaçaõ serena, e estiva, quando a superficie da terra se acha quente, e a mesma superficie em pó subtil, se sobrevém subitamente huma trovoada, e a esta se segue logo chuva, no mesmo instante, que as primeiras pingas de agoa cahem sobre a terra, vê-se entaõ huma immensidade de sapinhos, saltando de huma parte para outra, e buscando os lugares mais abrigados, como saõ os encostos das paredes nas partes em que as há; e isto para evitarem a molestia das agoas que haõ de vir a correr por alli mesmo. Examinados estes animalejos, achaõ-se ser verdadeiros sapos naõ só na figura exterior, mas em todas as suas propriedades, gerados, e nascidos ao primeiro contato de agoa na terra pulverulenta. Naõ sendo este fato ambíguo, ou duvidoso, com tudo he de explicaçaõ ardua, e ter-se-hia por fabuloso, e impossível (como outros muitos de que fazem mençaõ os naturalistas) se naõ fora visto, e observado infinitas vezes nas partes que costuma acontecer.

E na verdade faz-se violento o crer que um animal possa produzir-se sem a concurrencia de um principio seminal antecedente. Hum contato momentaneo parece que naõ póde formar musculos perfeitos, arterias, vêas, sangue, instinto. Neste caso, a possibilidade verifica-se a posteriori, e nunca poderia conhecer-se por outro modo, nem por raciocinio algum. Para aquella producção devemos entender que concorre o ar, a agoa, e a terra, modificados, ou dispostos esses elementos para semelhante creaçaõ; a forma, porém, com que aquelles elementos se dispoem, e modificaõ, seria trabalho perdido o investigar.
Neste caso naõ podemos dizer propriamente que chovem sapos, nem que estes se sustentem no ar, de onde cahem; porque naquellas mesmas agoas, recebidas em vasos, naõ se encontram sapos, mas precisamente quando cahem sobre o pó da terra quente. A raridade está em receberem aquelles a tua forma perfeita, e distintiva, no mesmo instante, ou acto de nascer, e de nascerem sem dependencia alguma de outro animal da mesma especie.

Se quizermos dizer que huma producção tal é parto da corrupção, contra isso teriamos o modo com que aquella mesma producção se faz; além de naõ ser ainda muito certo o axioma que a corrupção de hum he geraçaõ de outro. No fato mencionado observou-se sempre, que o nascimento dos sapos só provém quando a terra está summamente seca, e reduzida a pó na superficie por causa da mesma sequidaõ; e neste estado naõ pode haver corrupçaõ na terra; porque nenhum corpo se corrompe sem a presença de humidade, e onde a naõ ha naõ pode ter lugar a corrupção; antes para esta se impedir é seguro meio o impedir todo o commercio de humidade com o corpo que se quer preservar da corrupçaõ.

E ainda sem ser por aquelle fundamento, he tambem certo que nenhuma corrupçaõ se faz em um instante; a natureza naõ corrompe, nem produz sem tempo, mais ou menos progressivo, segundo a qualidade da producção ou corrupçaõ. Hum instante verdadeiramente naõ he tempo, ainda que o tempo se compoem de instantes; cada hum destes podemos considerar como hum ponto mathematico, em que naõ ha partes algumas, ainda que de pontos se fórma qualquer parte. E assim do nascimento momentaneo daquelles animaes immundos, o que podemos dizer he ser um phenómeno do numero daqueles que se naõ podem explicar physicamente; dos quaes há muitos que, para se explicarem, he necessário entrar em supposiçoens gratuitas, ainda menos explicaveis, e nunca demonstraveis.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s