Antonio Engelke
O cardápio de estereótipos era vasto. Havia a violência, pura: joelhaço estalando na costela, canelada na têmpora, cotovelo rasgando supercílio, homens levados ao chão apenas para terem os rostos empapados de vermelho esmurrados ainda mais impiedosamente, até a inconsciência. A estetização da violência: golpes repetidos em slow motion em telões de alta definição, suficientes para satisfazer o voyeurismo mais exigente. A estilização da violência: músculos metidos em camisetas apertadas, pescoços grossos, orelhas inchadas de carne morta, retorcida de sangue coagulado. Mais importante, havia o culto à violência, sua celebração entusiasmada:
quinze mil pessoas reunidas na expectativa de nocautes e finalizações espetaculares, prestigiando o esporte que mais cresce no mundo, o Mixed Martial Arts (MMA). Cenário armado, todos a postos – “Are you ready?”, pergunta o árbitro para os lutadores –: o pau começa a cantar.
Mas o estereótipo, disse Barthes, é o vírus da essência. Sim, o esporte é violento – e no entanto, há mais mortes no Boxe do que no MMA. Do mesmo modo, é difícil não reparar na aparência dos fãs hardcores, de quem a maioria das pessoas prefere guardar distância segura. Ainda que façamos o esforço de suspender pré-conceitos a fim de observar participando – e reparar na orelha estourada o símbolo máximo de pertença ao grupo, espécie de “você sabe com quem está falando?” não-discursivo; na predileção metonímica por cães da raça pitbull; ou na homofobia que decorre do fantasma que lhes persegue secretamente a (in)consciência: o fato de sentirem prazer em agarrem-se a homens suados –, ainda que procuremos percorrer com um olhar ingenuamente curioso os corredores que dão acesso ao camarote de número 6 do HSBC Arena, a agitação nervosa da atmosfera do lugar e a ansiedade de achar os assentos que nos cabiam impedem maiores vôos. Perdoem. Eu não estava lá para fazer antropologia. Eu estava lá para ver porrada.
A noite foi de três gênios do esporte. Primeiro: Bruce Buffer, ring annoucer do UFC. O timbre da voz, a emoção perfeitamente modulada no alongamento das sílabas certas – “iiiiiiiiiiiit’s time! Five rounds for the U-F-C middleweight championship…” –, e o estádio inteiro ecoando-lhe as palavras, como numa oração. Na sua voz, os combates são anunciados com um misto de heroísmo grandiloqüente e seriedade profissional que dá a exata medida do que está por vir. Nem asséptico demais, o que nos retiraria a fervura do sangue, nem fanfarrão além da conta, como um Galvão Bueno de bizarrices circenses. E o gestual é também perfeito. Por algum motivo inexplicável, a TV não o exibe em seu melhor; quem quiser ver os giros 180 graus, os saltos entusiasmados e os movimentos ágeis de suas mãos terá que procurar no youtube, ou assistir um UFC ao vivo. Bruce Buffer não é a grande estrela do show – não é ele quem leva as pessoas ao orgasmo. Mas faz as preliminares como ninguém.
O primeiro êxtase da noite veio pelas mãos de Antonio Rodrigo Nogueira, o “Minotauro”. Baiano de nascença, “Minotauro” é chamado de o “Brazilian Rocky Balboa”: como o boxeur imortalizado por Stallone, fez fama apanhando até não poder mais, apenas para encaixar chaves de braço ou estrangulamentos milagrosos no final dos combates e sair vencedor. Não lutava há mais de ano, detido por três cirurgias consecutivas. Teve 4 meses para se preparar para encarar aquele que é (era) considerado uma das promessas entre os pesados, o americano Brendan Schaub. Em pouco mais de 3 minutos de luta, a mãozinha do brasileiro encontrou o destino certo. Enquanto Schaub caía desacordado, a platéia explodia numa comoção que até então eu só havia visto em duas ocasiões: gol em final de campeonato e arremesso de rosas em show do Roberto Carlos. Delírio. Gritaria. Copos de cerveja voando. Pessoas se abraçando, inclusive eu, minha irmã e minha namorada. O canto emocionado em uníssono: “ô ô ô ô, o campeão voltou, o campeão voltou, ô ô ô ô…”
Enfim, Anderson “The Spider” Silva. Afirmá-lo o melhor lutador em atuação hoje é dizer pouco. Anderson Silva é o Fred Astaire da porrada. O Baryshnikov da violência. O Muhammad Ali da atual geração. A comparação procede: o “Aranha” não apenas derrota adversários, faz com que pareçam amadores. Abaixa a guarda, oferecendo ao oponente o rosto. Abusa do jogo de pernas, dançando para cá e para lá. Tem o quadril elástico. Esquiva-se usando apenas movimentos de tronco e cabeça – e, como Ali fazia, nocauteia usando jabs vindos ninguém sabe de onde. Naquela noite não foi diferente. Quando a vítima da vez, o japonês Yushin Okami, subiu ao octógono, foi recebido pelo coro “Uh! Vai morrer! Uh! Vai morrer!” – e pelo olhar atento de minha namorada, que decretou: “Mas este japa não tem volume nenhum na sunga!” Que o japonês tivesse colhões de subir no ringue contra o lutador mais temido do mundo, era fora de questão. Mas faltava-lhe o calibre. Okami sucumbiu no segundo round, encolhido no chão, arregaçado pelo castigo que vinha de cima, das longas patas do Aranha. Delírio. Gritaria. Copos de cerveja voando.
Sobre esteriótipos, me lembrei desse viral recente: http://www.youtube.com/watch?v=RS3iB47nQ6E&feature=youtu.be
Espetacular.
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Bom demais…
Abs!
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Demais o texto!!!! queria muito estar lá pra presenciar essa catarse. Um outro detalhe que deu pra ver pela transmissão foram os arrastões de bonés, surreal!
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