Duas ou três coisas sobre “A Árvore da Vida”

Antonio Engelke

Uma imagem difusa, uma voz feminina que sussurra. Terrence Malick inicia seu “A Árvore da Vida” com um monólogo que apresenta a questão sobre a qual o filme depois irá se debruçar: a oposição entre o “caminho da graça” e  “o caminho da natureza”. E antes que uma história propriamente dita ganhe contornos mais nítidos na tela, antes que algum evento venha desencadear o restante da ação, Malick começa a nos levar para uma viagem pelo tempo e espaço, um mergulho demorado em imagens normalmente encontradas nos melhores programas tipo National Geographic ou Discovery Channel. As galáxias, a sopa primordial, o movimento das marés, a tosse vulcânica, as intempéries climáticas, os quatro elementos e assim por diante.

Aí o primeiro estranhamento, e também o primeiro sorriso no rosto: quem vê um documentário desses na televisão fica no máximo imerso em deslumbre estético; mas, depois de termos sido impactados pelo curto monólogo inicial do filme, as imagens que se sucedem na tela adquirem uma profundidade estranhamente filosófica. É como se Malick quisesse primeiro nos confrontar com a vastidão do espaço, a força bruta dos elementos, a lógica grandiosa e implacável do tempo, a ação devastadora do acaso – toda a matéria de que é feita a natureza –, para só depois contrapor a fragilidade da tentativa humana de escapar aos seus imperativos, “o caminho da graça”.

E sim, os dinossauros eram necessários. Cumprem uma dupla função: lembrar-nos de que somos habitantes apenas temporários neste planeta (a contingência de nossa existência), e dramatizar o fato de que a natureza é impiedosa. Recordemos a cena: um dinossauro vê um outro, menor, caído à beira do riacho, como que moribundo. Aproxima-se e pisa-lhe a cabeça, apenas para olhá-lo se debatendo e depois sair andando. Poderia tê-lo matado, se quisesse; preferiu no entanto prolongar seu sofrimento, e o deixou agonizando. Talvez esteja aí uma boa metáfora para descrever traços da relação torta que irá se estabelecer entre o personagem vivido por Brad Pitt e seus filhos, sobretudo o mais velho. Numa escala maior de tempo, nós homens somos tão insignificantes quanto dinossauros, e é por não suportarmos o peso de nossa insignificância – por sermos incapazes de lidar com o fato incômodo de que a vida afinal não tem sentido algum – que tivemos que inventar um Deus que, ao mesmo tempo que instaura uma instância de validação transcendente para as ações humanas, nos obriga a negar nossa própria natureza. Só assim a graça – o sentido – é possível.

Não há de ser coincidência as inúmeras sequências ao longo do filme nas quais a câmera realiza um movimento sempre ascendente, seja em direção às copas das árvores, seja acompanhando o elevador que corta o céu. Queremos as alturas, Malick parece nos dizer, desejamos o divino da graça – mas estamos condenados a renegá-la em função do pragmatismo a que a mera sobrevivência nos obriga a observar. Quando Brad Pitt pede ao filho que lhe esmurre o rosto, é esta a lição que ensina. Ou somos homens, e abraçamos as paixões inerentes à nossa natureza, ou almejamos tornar-nos deuses, o que é louvável porém prejudicial à condução do desempenho mundano. Paradoxo inescapável, que o filme tem o mérito de captar pelo olhar de uma criança, em tudo que este pode conter de incompreensão ingênua e resistência instintiva. A figura paterna é a encarnação do Deus Pai Todo Poderoso, que acolhe, provê, educa e prepara para a vida, mas que inflige o mal e a crueldade de forma arbitrária. Nesse sentido, o filme é muito mais do que a história de um pai que descarrega nos filhos, sobretudo no primogênito, as próprias frustrações. Antes, é uma reflexão sobre a frustração (a falha) inerente ao impulso contraditório de pretender ser humano e, ao mesmo tempo, escapar à natureza humana – e a necessidade de instâncias repressivas para realizar ambas as operações. Malick talvez esteja denunciando a impossibilidade de tal projeto, ou o seu custo, o que certamente não é novidade. Mas o fez com maestria, que é o que importa para um cineasta. Acompanhar a gestação do desejo de vingança (e liberdade) do filho mais velho é quase insuportável, mas nossa sede voyeurística não é saciada. Não precisamos ver como a tragédia se abateu, com que método, sob qual regime de crueldade; precisamos apenas acompanhar sua longa (e o tempo aqui importa) trajetória de formação, o caminho demorado mas implacável da natureza.

14 comentários sobre “Duas ou três coisas sobre “A Árvore da Vida”

  1. Adorei o texto, que tem uma precisão absurda no que diz respeito a “condição humana” e agora vejo que gostaria de ter escrito sobre isso.

    Só não concordo quando você fala sobre o dinossauro pisando no outro e “preferindo” deixá-lo agonizando. Isso é uma transferência da nossa humanidade no ato do bicho. Peferi entender que a ideia de morte, de dor, de agonia não pertence a natureza. Simplesmente inventamos isso e estamos aprisionados. O dinossauro só não se alimentou do outro. Talvez porque fosse onívoro. Acho mais provável.

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  2. Lindo seu texto, uma análise de mestre sobre um filme de mestre…
    Porém, a condição de salvação e redenção é proposta, você não acha?. Foi assim que pensei aquele final meio espírita. Uma apoteose do perdão, ou poderia ser uma projeção humana da perfeiçao que ele, sadicamente, mostra, para ainda mais contrapor a nossa condição de exilados em nós mesmos, à nossa condição demasiadamente humana e pretensamente superior e transcendente à natureza, à física, à história ao cosmos?
    Só para contribuir para o debate…
    abraços

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  3. Luciano,

    Obrigado.

    Não tenho certeza se entendi seu comentário. Mas não creio que “redenção” descreva bem o final do filme. Aliás, para falar a verdade, foi a parte de que menos gostei — isso para não dizer que o final é simplesmente ruim. Da mesma forma, não sei se a “perfeição” é tematizada no filme, como vc parece sugerir. Mas, bem, é apenas a minha opinião. Trata-se de um filme bastante abstrato, e as interpretações são livres, sempre.

    Grande abraço

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  4. Achei o texto excelente, mas tendo a concordar com o Luciano em relação ao desfecho da projeção. O filme se inicia com um prólogo em que contrapõem o caminho da graça e da natureza e termina com um epílogo em que faz uma clara menção (ao menos para mim) à transcendência, à graça. Se Malick não apresenta estes caminhos como estradas opostas, a parte final do filme apresenta uma redenção da condição humana na figura do perdão e do amor (tema pontuado pela narração em off). O diretor parece reencontrar um sentido na vida através do amor em um final onde o protagonista atravessa um portal (em meio a um deserto que termina numa praia) para se reencontrar com os personagens importantes de sua vida e ao final descer de novo à existência mundana (numa tomada em que desce no elevador panorâmico de um arranha céu). Achei a condução do filme algo que nos coloca defronte essa dicotomia entre a natureza e a sua negação, mas achei que o final fechou bastante. O epílogo do filme basicamente disse (pra mim) temos que viver com amor, pelo amor, através do amor para encontrarmos a graça, a transcendência. Algo meio batido, mas dito de forma primorosa, e isso talvez seja mesmo o mais importante.

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  5. Muito bom o texto do Pedro Sette-Câmara.

    Por outro lado, interessante essa coisa da polissemia. A citada cena do dinossauro, a ‘percebi’ de modo inteiramente diverso – praticamente o oposto! Ao ler, depois, os comentários, ‘meio que’ fiquei mal – como se tivesse sido flagrado em ‘crime de antropo-qualquer-coisa’. Mas reagi e discordo do comentado.

    Antes, a ‘regra’ (minha para mim): filme é para ser visto obrigatoriamente mais de uma vez. A primeira vez vê-se a “história”; o filme mesmo só começa a ser visto da segunda vez em diante. Filmes ‘complexos’ – obras ‘abertas’ – então!!!, mais ainda!

    A cena em si (puxando da memória a ‘sensação’ da hora): Um bicho agonizante, três ‘da mesma espécie’ afastando-se em descaso. Chega o outro, de outra espécie. Ameaça matar mas…, observa (“entende”?) e deixa para lá, seguindo na direção para onde foram os três vivinhos da silva anteriores.
    A impressionante (para mim) atitude do que me pareceu inequivocadamente um predador me levou a pensar na idéia de presença de ‘respeito’, ‘cuidado’, na atitude do bicho (e sustento que a ‘culpa’ para isso é do filme, do diretor). Se ‘alguém’ humaniza o animal ali é o filme. O animal agonizante estava em peleja com a morte – foi o que me pareceu ter sido percebido pelo predador.

    Muito romântico, ‘demasiadamente humano’? Certamente, mas não se tratava de um documentário national geographic. Efeitos especiais são caros. A sequência é pequena – e, sob certo ponto de vista, “bizarra”. Para mim ganha sentido por causa do contexto. E o contexto é o da polarização (dialética? ou apenas de “reconhecimento”?) entre natureza e graça – e os valores que o autor designa para cada um desses, tratados como extremos. Polarização, extremos, MAS não excludentes, muito antes interpenetráveis – no mínimo pela convivência.
    A cena, para mim, mostra que mesmo o monstro está prenhe de graça – embora não seja seu representante, já que ela se representa a si mesma. Ou a natureza, apesar da lista de valores ‘duros’, ‘negativos’, que a compõe, comporta ‘contradição’ – expressa na inusitada atitude do predador.
    Como espectador me permito perguntar a mim mesmo se senti perturbação diante da previsível (inequívoca, iminente e ‘normal’) morte do moribundo por destroçamento. Indefeso, o bicho estava entregue. Sorte do predador – azar do outro. Mas aí o filme simplesmente rompe a expectativa e me oferece um ato ‘sublime’ – vindo de um animal sabidamente ‘inclemente’ (sabemos que somos muito piores! – eis o parâmetro comparativo, eis o que me parece ‘a fé’ do autor).

    É um filme cheio de camadas. Será preciso rever bastante. Tentar ‘descobrir’ o que passou pela mente do autor pode ser divertido – tanto quanto vão. Tentar construir sentidos possíveis, isso já é mais interessante.

    Pelo texto do Pedro Sette-Cãmara percebi que ‘o mal’ – ou a natureza – é o personagem preferencial; ele evolui, cresce, se modifica, anda tortuoso, sofre, é vida. A graça é um estado ideal e, como tal, praticamente estanque (em sua… perfeição?). A graça, por contraste, conta a história do ‘mal’ – como pano de fundo que é.

    Mas será preciso ver de novo e desconfiar da memória. Sempre.

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  6. Vi o filme ontem e sua resenha dá de mil a zero na película. O filme tem algum mérito, mas soa como aquela piada que você precisa explicar. Acho que você foi generoso imputando Deus como criação do homem como fundamento da trama. Pra mim a abordagem foi bem mais apologética aos efeitos da “graça” do que sua denúncia como construção frente à inquietação humana. Algo do tipo “ah, se deus não existe, ainda assim é melhor pensarmos que ele está lá”.

    O “céu” praiano-global no final do filme, quando todos se encontram, é dose.

    Mas de fato admirei a ousadia da fotografia e especialmente a tensão que o diretor suscita abordando a relação do pai e do filho. Como você disse, o ímpeto voyeurístico acaba vencendo o mal-estar e nos obriga a acompanhar o desenrolar da história.

    Abração, Antonio!

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  7. Adorei o seu texto, mas acrescentaria a sutil mensagem presente no filme, sobre Nemesis (teoria do segundo sol e sua órbita prestes a equiparar Nemesis ao nosso sistema solar). Há quem questione isso, mas quem já leu bastante sobre Nemesis talvez perceba o recadinho. 🙂

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