O Inimigo Mora ao Lado

Rodrigo Mudesto e José Eisenberg

No século XXI, o terrorismo doméstico será o verdadeiro inimigo do ocidente.

Passados dez anos da sangrenta castração do duplo falo que adornava a Big Apple, o tempo nos coloca em melhores condições para situar a importância, dentro da história moderna, do fenômeno conhecido como terrorismo.  À medida que as manchetes abandonam as folhas de papel e lentamente se acomodam às telas touchscreen de nossos portáteis, podemos nos perguntar se serão feitas de binladens as manchetes do século XXI sobre seus novos heróis-vilões mórbidos. Afinal, de onde saíram os expoentes ultra-modernos da política pela pólvora?

Na Inglaterra, o patrono da política pela pólvora, Guy Fawkes (1570-1606) é lembrado por ser um vilão ou um héroi? Poucos se importam…, já se passaram tantos anos que o tema mais rende uma balada ou lucro vendendo máscaras. Em tempos de YouTube, dez anos bastaram para se ter um efeito parecido.  A cobertura midiática do que tem sido denominado “comemoração (sic) do aniversário do 11 de setembro” levanta sérias dúvidas se ele ainda é visto como um ataque ao centro do império, um que se orgulhava de só ter sido atacado em seu território pelos japoneses na Segunda Grande Guerra, e somente nas suas franjas colonialistas do Pacífico, ou se ele se tornou um acontecimento cívico-televisível. Um acontecimento  que, de tão fantástico em sua plasticidade cinematográfica, faz pairar no ar a dúvida sobre quando, e se, Hollywood terá a coragem de recontar a estória na grande tela. Vale lembrar que o Titanic, cujo binladen era um inocente iceberg de passagem, precisou de quase um século e Leonardo di Caprio na proa em uma cena de amor. O romance venceu a tragédia.

Guy Fawkes – Guido para aqueles que o conheciam da missa de domingo –, pretendia muito antes disto tudo acontecer, demolir o Parlamento inglês com a ajuda de alguns amigos. Se armou pra isso com 36 barris de pólvora, fracassou, e entrou para a história como um símbolo de idealismo ingênuo. Bin Laden preferiu pedir emprestados alguns aviões. Mobilizou recursos que fariam inveja a qualquer governante. Dez anos depois, todavia, é mais citado em memes cômicos na internet do que temido como uma ameaça de martírio para seguidores da famosa Al Qaeda.

Mas houve não muito tempo atrás um outro homem que, com um pouco de engenhosidade, recursos mínimos e, se acreditarmos em seus escritos, muita vontade de aprender, inaugurou uma forma mais moderna de terror, e o fez de tal forma que ao longo de seus 16 anos de atividade, e mesmo passados outros tantos desde sua prisão, seu nome nunca foi motivo de piada alguma.

Theodore John Kaczynski ficou conhecido como o Unabomber usando um expediente simples: o envio de encomendas explosivas pelo correio, com as quais ele deu início a sua própria forma de neoludismo. Diferente de seus predecessores ludistas do século dezenove, Kaczynski não odiava as máquinas desumanizadoras ou os governos imperialistas e tirânicos. O inimigo era o sistema industrial, entidade para ele responsável por solapar a vida humana em sociedade. Desejava uma sociedade fragmentada e autonomia para cada um desses fragmentos.

Os alvos do Unabomber eram principalmente engenheiros, diretores de empresas e pessoas que ele classificava como técnicos, para diferenciá-los dos pobres e inofensivos acadêmicos de humanidades, a quem ele generosamente não desejava nenhum mal. Ao explodir pessoas, não mirava nos danos que causava, que afinal foram poucos (oficialmente 3 mortes e 56 feridos, além de algum prejuízo patrimonial); almejava a própria exposição à mídia que obtinha, e foi sempre tão bem sucedido que uma de suas cartas, exigindo a publicação de seu manifesto acabou sendo publicada no New York Times, com a anuência, quiçá a mando, do FBI. Agia dessa forma a polícia federal dos Estados Unidos porque tornara-se incapaz de desvendar a identidade do Unabomber, e sua prisão só seria possível mais tarde com a delação feita por seu próprio irmão. Sua lição, entretanto, encontrou seguidores: a simplicidade do método, o acesso fácil aos insumos que empregava, e a escolha discriminada e limitada de seus alvos. Estes eram seus maiores trunfos contra os perseguidores.

Ted Kaczynski ensinou isto a Eric Harris e Dylan Klebold, responsáveis pelo massacre de Columbine High School em abril de 1999. E nunca a lição foi tão cuidadosamente seguida como no caso do noruguês Andrew Berwick, que no dia 22 de julho deste ano impressionou o mundo menos pelo fato de ter matado a tiros 69 pessoas em um encontro do Partido Trabalhista e explodido três prédios do governo norueguês em Oslo, mas principalmente por sua aparência comum, ou pelo menos do que todos imaginamos como a aparência de um norueguês comum, loiro, sem barba, sem turbante ou chapéu. Seu manifesto, que em muitos trechos plagia o de Kaczynski, (com certeza empregando nele o recurso ao “copie e cole”, tão caro a nossos estudantes), era baseado em um singelo lema: “uma pessoa com convicção tem a força equivalente a 100 mil que tenham apenas interesses”.

Tem sido noticiado, talvez ainda sem a devida ênfase, que nos últimos anos, ataques realizados por pequenos grupos de hackers aos aparatos digitais de grandes conglomerados da indústria da tecnologia e do Estado vem se tornando cada vez mais agressivos.  Mesmo sem derramar nenhum sangue, dinheiro e reputações vem sendo vertidas e, curiosamente, alusões a Guy Fawkes (ou ao “V”, um personagem inspirado nele já retratado em diferentes mídias incluindo o cinema e quadrinhos) são frequentes nestes grupos. O ideário, as razões e os alvos, no entanto, estão com certeza muito mais próximos dos ensinamentos do Unabomber do que do anti-herói britânico de séculos atrás. Nos ataques digitais, é possível verificar o mesmo desejo de publicidade, a mesma eloquência nos textos que apresentam razões e o repetido álibi calcado em uma busca de uma sociedade menos totalitária, livre da manipulação das grandes corporações, com grande ênfase na defesa da “autonomia”. Mesmo com o prejuízo que causam, por sorte esses jovens têm preferido militar ciberneticamente, e vidas ainda são mais vivas do que dados perdidos em servidores estratégicos. Pois com sua capacidade de organização, competência e habilidades, estes jovens hackers poderiam tornar-se uma legião de dezenas de unabombers, com acesso a mais recursos, mais tecnologia e com poder de destruição em massa de fazer inveja ao finado Osama.

O “destruição em massa” talvez seja a senha para os novos tempos. O  próprio Unabomber em 1995 já chamava a atenção para o fato de que não se sentia mais limitado pelo tamanho ou potencial dos explosivos. Será que da próxima vez que alguém achar que precisa derrubar prédios pra fazer sua mensagem chegar ao mundo, precisará roubar aviões?  A máquina onde você está lendo este texto tem capacidade de “destruição em massa” do que qualquer coisa que Kaczynski poderia sonhar quando começou sua jornada. Hoje gravamos nossos próprios filmes, compilamos em dias bibliotecas de livros e músicas que há poucas décadas teriam consumido a vida de especialistas. Com poucos cliques podemos aprender tudo que é preciso saber sobre armas químicas, bombas ou até mais… E se ao invés de dois revólveres, o atirador da Escola Tasso da Silveira, no Realengo, bairro do Rio de Janeiro, portasse algumas bombas? O Brasil também tem seus protagonistas nesta narrativa.

Se a senha para os novos tempos está na democratização profunda da capacidade de “destruição em massa”, o usuário mais perigoso e desconhecido mora ao lado. Quando o inimigo é externo, o modo é a guerra. Não importam seus métodos. Mas quando o inimigo é intangível, doméstico, vivendo entre iguais e compartilhando a maioria de seus valores, uma sociedade precisa olhar para si própria e acertar no diagnóstico das complexas razões para a emergência deste inimigo interno. Basta que o Coiote acerte uma única vez seu truque contra Papa-léguas para que o “Fim” impresso no último quadro da película ganhe um duplo sentido. Se os coiotes forem muitos e começarem a acertar com frequência…

* * *

Carta do Unabomber publicada no The New York Times em 19 de setembro de 1995

Apresentamos abaixo texto da carta recebida pelo Times em 24 de abril de 1995, enviada pelo auto  designado “grupo terrorista FC”, assumindo responsabilidade pelos atentados em série que o FBI atribui a uma única pessoa ou grupo, neste caso conhecido como Unabom. A carta foi postada de Oakland.

O documento está publicado verbatim, com a grafia, ênfases e pontuação originais.

Três passagens foram suprimidas a pedido do FBI.

* * *

(Passagem suprimida a pedido do FBI).

Esta é uma mensagem do grupo terrorista FC.

Nós explodimos Thomas Mosser em dezembro passado porque ele era um executivo da Burston-Marsteller. Entre outros delitos, a Burston-Marsteller ajudou a Exxon a limpar sua imagem depois do incidente do Exxon Valdez. Nós atacamos a Burston-Marsteller, entretanto, menos por causa de quaisquer delitos em particular do que por questões de princípio. A Burston-Marsteller é provalvelmente a maior empresa existente no campo das relações públicas.

Isto significa que seu negócio é desenvolver técnicas para manipular a atitude alheia. Foi por esta razão, mais do que pela suas ações em casos específicos, que nós enviamos uma bomba para um executivo daquela empresa.

Alguns noticiários enganosos disseram que nós estamos atacando universidades ou acadêmicos. Não temos nada contra universidades e acadêmicos em si. Todos aqueles ligados à universidade que atacamos são especialistas em áreas técnicas (consideramos certos campos da psicologia aplicada, como a modificação de comportamentos, como áreas técnicas). Não queremos que ninguém pense que desejamos causar danos a professores que estudam arqueologia, história, literatura e outras coisas inofensivas do tipo. Os indivíduos que queremos pegar são cientistas e engenheiros, especialmente em áreas estratégicas como computadores e genética. Quanto à bomba colocada na Escola de Administração da Universidade de Utah, foi uma operação desastrosa. Não contaremos como e porque ela fracassou, porque não queremos dar pistas para o FBI. Ninguém se machucou por causa daquela bomba.

Na carta que enviamos a vocês anteriormente, dissemos que éramos anarquistas. Mas a  palavra “anarquista” tem sido utilizada para descrever várias atitudes e nosso uso exige elucidação. Chamamo-nos de anarquistas porque gostaríamos, idealmente, de fragmentar a sociedade como um todo em unidades muito pequenas e completamente autônomas. Lamentavelmente, como não enxergamos nenhuma trilha clara para atingir esta meta, deixamos o problema para um futuro indefinido. De imediato, cremos que a destruição do sistema industrial mundial seja factível dentro de algumas décadas. Pretendemos promover, com nossos atentados à bomba, instabilidade social na sociedade industrial, propagar idéias contrárias a ela, e encorajar aqueles que odeiam o sistema industrial.

O FBI procura caracterizar estes atentados como a obra de um maluco isolado. Nós não perderemos tempo discutindo se somos malucos, mas certamente não estamos isolados. Por motivos de segurança, não revelaremos quantos somos em nosso grupo, mas qualquer um que leia publicações ambientalistas radicais e anarquistas verá que a oposição ao sistema tecnológico e industrial está difundida e se encontra em crescimento. 

Porque, no entanto, somente agora anunciamos nossos objetivos, se fizemos nossa primeira bomba coisa de dezessete anos atrás? Inicialmente, nossas bombas eram ineficientes demais para chamar a atenção do público ou para insuflar aqueles que odeiam o sistema. Aprendemos que bombas de pólvora, quando pequenas o suficiente para serem transportadas sem serem notadas, eram  fracas demais para causar destruição considerável. Saímos de circulação por uns dois anos para realizar experimentos. Aprendemos então a construir bombas-tubo suficientemente potentes, e as utilizamos com tanto em  atentados bem sucedidos como em outros que fracassaram.

(Passagem suprimida a pedido do FBI).

Agora que já não precisamos confinar explosivos em  tubos, não há mais limites para o tamanho e a forma de nossas bombas. Estamos convencidos de que saberemos aumentar a potência de nossos explosivos e reduzir o número de baterias necessárias para detoná-los. E, como indicado acima, agora também temos material de fragmentação mais eficiente. Esperamos, portanto, ser capazes de colocar bombas letais em pacotes cada vez menores, mais leves e cada vez mais com aparência inofensiva. Por outro lado, acreditamos que seremos capazes de fazer bombas muito maiores do que qualquer outra que fizemos até hoje. Com uma mala ou mesmo uma maleta cheia de explosivos, poderemos explodir paredes de construções de tamanho considerável.

Estamos claramente preparados para causar imenso dano. E não há indícios de que o FBI vá nos pegar tão cedo. O FBI é patético.

As pessoas que estão nos empurrando esta conversa de crescimento e progresso merecem ser severamente castigadas. Mas nosso objetivo primordial não é puni-las, é difundir ideias. De qualquer forma estamos ficando entediados de fazer bombas. Não tem a menor graça passar todas as suas noites e finais de semana preparando misturas perigosas, fazendo mecanismos de detonação a partir de ferro velho, ou ficar procurando um lugar isolado o bastante nas sierras para testar uma bomba. Faremos, então, uma oferta irresistível.

Nós temos um longo artigo, entre 29.000 e 37.000 palavras, que queremos ver publicado. Se vocês o publicarem de acordo com nossas exigências, nós desistiremos permanentemente de atividades terroristas. O texto terá de ser publicado no The New York Times, Time ou Newsweek, ou qualquer outra publicação de abrangência nacional e de grande circulação. Dada sua extensão, acreditamos que o texto terá que ser publicado em partes. Como alternativa, ele pode ser publicado como um pequeno livro, mas o livro deve ser amplamente divulgado e distribuído a um preço acessível em livrarias de todo o país e também ao menos alguns lugares no exterior. Quem quer que concorde em publicar o material  terá direitos exclusivos de reprodução por um periodo de seis meses, e poderá auferir lucro que lhe aprouver. Depois de seis meses da primeira aparição do artigo ou livro, ele deverá se cair em domínio público, de forma que qualquer um possa reproduzi-lo ou publicá-lo (se o material for publicado em partes, o primeiro número se torna domínio público seis meses depois do aparecimento do primeiro número, segundo número, etc.). Nós devemos ter o direito de publicar no The New York Times, Time ou Newsweek, anualmente, durante os três anos subsequentes ao aparecimento do nosso artigo ou livro, um texto de três mil palavras expandindo ou clarificando nosso material, ou rebatendo críticas.

O artigo não defenderá explicitamente a violência. Haverá uma inevitável implicação de que somos a favor da violência na medida em que ela se faz necessária, já que defendemos a eliminação da sociedade industrial e nós próprios temos feito dela para este fim. Mas o artigo não defenderá violência explicitamente, nem proporá que se derrube o governo dos Estados Unidos, nem conterá linguagem obscena ou quaisquer outras coisas que vocês poderiam  considerar inaceitáveis para publicação.

O que garante que nós cumpriremos nossa promessa de desistir do terrorismo se nossas demandas forem atendidas? É do nosso interesse cumprir nossa promessa. Nós queremos ganhar adesão a determinadas ideias. Se nós quebrarmos a promessa, perderemos o respeito das pessoas, que estarão menos inclinadas, portanto, a aceitar nossas ideias.

Nossa oferta de desistir do terrorismo depende de três condições. Primeira: Nossa promessa de desistir não entra em vigor até que todas as partes de nosso artigo ou livro tenham sido publicadas. Segunda: Se as autoridades conseguirem nos encontrar e tentarem prender qualquer um de nós, ou mesmo nos interrogar acerca dos atentados, nos reservamos o direito de usar de violência. Terceira: Nós distinguimos terrorismo e sabotagem. Por terrorismo entendemos ações motivadas pelo desejo de influenciar o desenvolvimento de uma sociedade e cuja intenção é causar morte ou ferimentos em seres humanos. Por sabotagem entendemos ações motivadas pelo mesmo desejo, mas cuja intenção é destruir propriedade, sem risco a seres humanos. A promessa que fazemos é de desistir de terrorismo. Reservamos o direito de engajar em atividades de sabotagem.

É bem possível que os fracassos de nossos primeiros atentados tenham nos desestimulado a fazer declarações públicas naquela época. Éramos muito jovens então e nosso pensamento pouco refinado. Ao longo dos anos, temos nos dedicado ao desenvolvimento de nossas ideias tanto quanto nos dedicamos ao desenvolvimento de bombas, e agora temos algo sério a dizer. Acreditamos que estamos maduros para apresentar nossas ideias anti-industriais.

Por favor providenciem para que a resposta à nossa proposta seja amplamente divulgada na mídia para evitar, assim não corremos o risco de não lê-la.  Certifiquem-se de nos informar onde e como nosso material será publicado e quanto tempo levará para a sua publicação após o envio do manuscrito. Se a resposta for adequada, concluiremos a preparação da manuscrito e o enviaremos a vocês. Se a resposta for inadequada, começaremos a construir nossa próxima bomba.

Recomendamos que publiquem esta carta.

FC

(Passagem suprimida a pedido do FBI).

(Tradução de José Eisenberg. Revisão de Ricardo Nassif.)

Link para o manifesto Unabomber

4 comentários sobre “O Inimigo Mora ao Lado

  1. Pingback: O Inimigo Mora ao Lado | Nem um Pio

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s